Nem sempre é fácil a vida do cronista. Por vezes, somos traídos por nossa intuição. Aquela, que Thomas Edison costumava chamar de “a melhor visão”. Acontece quando ela insiste em nos levar por caminhos de pouca estética. Falar do lixo, por exemplo, é um assunto que, já de pronto, não cheira bem. E como tudo o que não agrada aos nossos cinco sentidos, um texto a falar de lixo e espiritualidade sempre corre o risco de ir parar em algum lugar insalubre.
Engana-se aquele que acredita que o fim da vida material termina nos contentores. Que basta depositar os seus rejeitos e pronto. Pior do que cumprir uma obrigação, é deixar de fazê-la ou malfazê-la. Me refiro aos seres humanos que sequer têm o cuidado de deitar o que não tem serventia dentro do cesto. Tudo isso, porque o lixo diz muito sobre nós. Revela quem somos, a partir daquilo que consumimos. Diga-me o que consomes e te direi quem és! O dito popular, ora adaptado, não deixa de ser verdade. Jesus, por exemplo, não via problemas em ter com ladrões e prostitutas. Prova de que o original parece ser mais fraco do que este que vos escrevo. Eis a razão pela qual, para desgosto dos mais críticos, o lixo tem lá o seu caráter filosófico e investigativo.
Embora hoje em dia estejamos mais preocupados com a nossa proteção de dados, considerando o tempo que dedicamos às telas e os famigerados cookies, por vezes esquecemos o quão fácil é analisar uma pessoa a partir do que ela deita ao lixo, ou, a forma como ela o manipula. Os investigadores criminais, não raro vão ao lixo buscar elementos sobre o comportamento de seus investigados. Mas aqui, não se trata, por óbvio, de estimular pessoas a andar por aí a revirar caixotes e bisbilhotar a vida dos outros. Importa sim, entender a cadeia de valor e a logística que envolve a destinação daquilo que não nos serve mais e analisar o comportamento humano.
Voltando ao risco do escritor. Quando se pensa em um texto de jornal, é preciso torná-lo menos denso. Se fosse comparável a um remédio ou elixir, seria como deixá-lo mais palatável. O leitor, ao desistir da leitura e virar a página, já indica qual será o nosso destino. E por falar em densidade, me refiro também à leveza de nossa alma. Basta reparar: o sujeito que não dá ao lixo o destino correto, o seu devido valor, age com ingratidão por toda a energia que o processo consumiu. Sim, o lixo tem muito valor. Ao deitá-lo por aí, a qualquer modo, o sujeito interrompe o processo e, é claro, prejudica toda uma cadeia de valor. Além de que essa interrupção demanda que alguém limpe a sujeira do outro ou faça a sua parte neste processo.
E já que falei em viés filosófico, ouso dizer que o sujeito que não tem cuidado com o lixo, age como um espírito errante. Passa a viver com uma cruz na testa, como bem descreveu Saramago na obra Caim. São pessoas que costumam ser apegadas à utilidade material, o oposto dos acumuladores, que em verdade desenvolvem uma doença (CID-11). Enquanto esses juntam tudo o que acreditam um dia precisarem, os utilitaristas fazem o oposto. Na primeira oportunidade, seja ela boa ou não, descartam tudo o que não lhes dá mais proveito, ainda que este não seja o melhor conceito filosófico. Por este viés, o utilitarismo bem que poderia ser objeto de tratamento. Se não faz mal a si mesmo, o comportamento repetido pelos pares pode fazer mal para a sociedade. É preciso um exemplo? Então vejamos.
Imagine que você caminha, desde a central de camionagem até o mercado público, sob um sol escaldante. Você está sedento, com a boca seca. De repente, no meio da subida, encontra uma tasquinha a vender água fresca. Naquele instante, o líquido precioso tem para si um enorme valor. Mas você não consegue comprar água sem ter um recipiente adequado. É por isso que elas são vendidas em garrafas. Do contrário, além de passar calor, precisaríamos carregar a própria ânfora. Reparaste que agora as tampinhas vêm grudadas ao gargalo?
Então, no seu raciocínio utilitarista, você pagou pela água. Logo, a garrafa plástica não tem nenhum valor depois de vazia (na Alemanha tem). Assim, uma vez satisfeita a sua necessidade, o utilitarista logo pensa em descartá-la. Um sujeito normal ainda vive o dilema: devo carregar a maldita garrafa? Onde será que tem um cesto de lixo para deitar fora? São questionamentos pessoais que o utilitarista não faz. Tão logo satisfaz suas necessidades, ele a joga fora. E nessas deambulações que temos quando andamos com o sol à cabeça, acabamos por esquecer que a embalagem teve uma importância fundamental para matar a sede e merece o destino correto, além da nossa gratidão.
(…)
Há tempos tenho reparado na sujeira que se acumula pelas ruas da Covilhã. Geralmente são embalagens descartadas, garrafas e beatas. Nem parece que estamos no primeiro mundo. As pastilhas elásticas são outro exemplo. Pelo menos aderem ao piso, mas não deixam de ser disgusting. Estragam a estética. Isto, quando não grudam no sapato ou são afixadas por debaixo dos assentos, como nas cedeiras escolares. Me perdoem os que acreditam ser a recolha do lixo deitado ao chão uma tarefa da Câmara. Não é. Pensamentos como este traduzem, não só a mentalidade utilitarista e egoísta do ser humano, mas sobretudo o desrespeito para com a coletividade e um atraso em termos civilizatórios.
E por que há tanto lixo mal destinado? E mais! Por que razão alguns ainda insistem em dizer que os caminhões da ADC misturam tudo interinamente e por isso não fazem a separação? Por puro pré-conceito. Também, porque falar sobre o que já não tem mais utilidade, quando em verdade tem, não interessa a essas pessoas. O lixo não é um assunto interessante, razão de minha ousadia. No entanto, no campo filosófico, há muito por se falar. E falo especialmente aos que acreditam que a vida acaba com a morte, que a nossa energia, a nossa alma, quando morremos, termina enterrada em uma campa qualquer. O resultado disso, são milhares de almas que acreditam estar encarnadas, vivinhas, quando já não estão. Gente que segue atordoada pelo passado e apegada ao mundo material. Densas, não conseguem sublimar. Mas o que isso teria a ver com o lixo?
Refiro ao comportamento humano. Pessoas que pouco se importam com o ambiente, dessas que têm o mau hábito de deitar lixo no chão ou de simplesmente não separar os resíduos como reza a cartilha da ecologia, são no fundo almas individualistas e utilitaristas. Individualistas, esquecem que vivemos num mundo plural. Não se trata de ignorar a importância da materialidade. Importa é saber que o mundo é feito de energia e que esta não cessa com o fim da utilidade. O nosso corpo é um grande exemplo. Somos um manancial de bactérias a conviver em harmonia com todas as nossas células. Quando ocorre a morte do corpo físico, cessa a nossa utilidade social ou individual. Tornamo-nos alimento de bactérias, que ainda por cima ficam com a parte suja do processo. Transformam o que restou de nós em pó. Este, sabemos bem onde vai parar.
Mas…e a nossa alma, a nossa energia? As respostas não são unânimes, mas o fim do nosso corpo todos sabem. Seremos lixo e não ficaria bem se abandonassem nosso corpo por aí, depois de perdemos a nossa serventia. Isto explica porque temos cemitérios tão bonitos.
É. O lixo diz muito sobre nós e sobre os padrões de vibração de nossa sociedade. E você, alma errante e irresponsável, destas que deita o lixo no chão, pergunto: Estás preparado para dar aos resíduos o destino correto nessa cadeia energética, ou serás mais um desses espíritos errantes a viver revirando o lixo em procura de respostas?
Por Marcos Vinicius Leite, colunista e colaborador do Jornal Bom Dia, de Erechim/RS e também colunista do jornal Fórum da Covilhã, clicando no link abaixo:
#filosofia #sustentabilidade #saúdemental #saúde #lixo #educação