Por Homero Mazzola, analista e terapeuta junguiano.
Instagram: @homeromazzola

Novamente o mundo se depara com uma crise de efeitos
globais. A humanidade, que já enfrentou tantas outras,
sobreviveu e continuará sobrevivendo. Cada uma delas trouxe
lições e aprendizados e produziu, em parte da humanidade,
crescimento psíquico, aumentando a percepção da necessidade
de seguirmos o caminho da individuação, ampliando a
conscientização de que precisamos nos envolver na construção
de um mundo adequado para as futuras gerações.

Drama contemporâneo, individuação e um futuro possível.

Tudo no universo se desenvolve por meio de processos, seja no universo material,
seja no psíquico. O entendimento desse fato diminui o peso do imediatismo que a
modernidade colocou nas costas da humanidade, tal como Atlas, condenado a carregar
eternamente o mundo em seus ombros.

Sob tal ótica podemos também observar o quadro pandêmico que vem assolando
o planeta desde o final de 2019. A racionalidade o explica sob inúmeras razões, entre as
quais, teorias das conspirações, negligências governamentais, falta de
comprometimento da população. Outros tantos entendimentos, religiosos, científicos,
filosóficos, morais, ambientais etc. lançam suas verdades sobre uma humanidade
atônita, esquecida que na história evolutiva, frequentes situações similares se fizeram
presentes.

Podemos elaborar algumas reflexões a respeito, fundamentadas na psicologia
analítica. Pandemias são processos complexos, e algumas já se fizeram presentes na
história humana. A que nos aflige atualmente, está impactando a consciência coletiva da
sociedade planetária, que se apresenta massificada devido à uniteralidade psíquica que
se acentuou nos últimos séculos, fruto de um cientificismo e racionalidade exacerbados,
que tem afastado o homem de “Deus” e do sagrado. A modernidade, com seu “canto da
sereia” tem afastado o indivíduo de seu propósito maior, a busca do significado da vida,
a individuação, que para Jung representava um confronto fastidioso, mas indispensável,
para tornar conscientes, os componentes inconscientes da personalidade, vitalizando e
enriquecendo a personalidade, levando o eu a reconhecer e a se relacionar com o centro
da totalidade, o “self”. A individuação, que pode ser entendida como “realizar-se a si mesmo”, é integradora, não exclui o mundo, ao contrário, o engloba, e representa a
primeira etapa de um longo caminho a ser percorrido pela humanidade em sua jornada
rumo ao futuro, facilitando ao homem alcançar uma consciência ampliada e se tornar
inteiro, e não dividido (JUNG, 2009). Porém, vivemos uma era de imediatismos, de
respostas rápidas, de pouca paciência para entender a complexidade da vida e as lições
que ela nos oferece.

Nesse contexto, podemos refletir sobre possibilidades de entendimento que esta
pandemia nos oferece. Psiquicamente, pode ser entendida simbolicamente como uma
forma compensatória entre inconsciente e a consciência coletiva, massificada e
unilateral. As ciências naturais, por outro lado, revelam que o homem, em sua ânsia de
dominar a natureza, acaba mexendo com forças que não domina e nem conhece
adequadamente, interferindo de forma inadequada com a biosfera planetária, acirrando
a polaridade homem/natureza, conflitando com Gaia, a mãe-terra, que nos nutre e
alimenta. Entretanto, fazem-se necessários outros olhares, que transcendam as visões
científicas e religiosas dominantes, para se compreender os conteúdos psíquicos que a
pandemia ativou em nós, pois sem uma abordagem holística, somos vítimas da virulência
psíquica já presente, que nos força a desviar o olhar do que realmente importa, para
continuar a nutrir as desigualdades, as discriminações de toda ordem, os conflitos
sociais e políticos, as neuroses, que estão sendo ampliados com esta pandemia,
fazendo-nos esquecer do sentido da vida, do arquétipo da alteridade e de nutrir a
compaixão.

Não é a pandemia sem si, que é um fenômeno biológico, mas são os afetos
constelados que ela produz nas pessoas que provocam um efeito compensatório, pois
os conteúdos inconscientes gerados atingem nossas consciências gerando medos
ansiedades e culpas, e daí nos levam a refletir sobre nossa relação com a natureza e
com o próprio mundo. Fazemos parte de uma humanidade que vive ainda uma
infantilidade psíquica, regida pelo arquétipo materno, e precisamos ampliar muito o
entendimento sobre nosso papel neste planeta, o de cuidadores de Pacha Mama, a
deusa Gaia, a mãe Terra, e de todos os seus filhos, os seres da criação, e não o de
destruidores e sugadores de recursos naturais, que Gaia já não consegue suprir na
medida de nossa ganância capitalista. É algo fácil de ser alcançado? Certamente não,
pois se o fosse, seríamos um mundo de iluminados, após mais de 2 milhões de anos de
evolução desde o primitivo “homo habilis”.

Há uma complexidade inerente a estes questionamentos, o que exige o recurso de
áreas do conhecimento que ainda não dominamos totalmente, entre as quais deve-se
enfatizar a psicologia analítica, cujo foco é o ser humano, o “homo psíquico”, dotado de uma psique (alma) e suas funções, per si de difícil explicação, mas imprescindível para
justificar tudo o que existe:
“…sem a psique não existiria o mundo ou, mais precisamente, mundo humano algum.
De certo modo tudo depende da psique humana e de suas funções. Elas merecem a nossa
maior atenção, sobretudo hoje em dia quando o bem-estar futuro reconhecidamente não
mais se decide pela ameaça de animais ferozes, pelas catástrofes naturais ou pelo perigo
de vastas epidemias, mas, única e exclusivamente pelas alterações psíquicas dos homens”
(JUNG, 2011a, p.53).

Se o ser humano representa um risco para o futuro da humanidade, e não as
epidemias e catástrofes naturais, torna-se importante não somente compreendê-lo,
como, também, o seu papel no mundo. No centro de tais reflexões surge naturalmente o
processo de individuação, o caminho que conduz ao desenvolvimento da personalidade
individual, à realização consciente da unicidade do ser, à consciência da sombra, dos
limites e possibilidades de realização da alma no mundo, às transformações psicológicas
que nos oferecem a experiencia de um encontro entre os opostos que nos habitam.
Individuação não é uma obrigação, mas uma opção, e seguir este caminho exige o
autoconhecimento, a transcendência dos sentidos, a união dos opostos e a união com o
sagrado. Cabe ao ego esta tarefa, orientada a contribuir com a realização existencial,
criando e reinventando sentidos e significados para a vida humana. A individuação
reverencia o arquétipo da “Imago Dei”, metáfora da imagem de Deus em nós,
personificado no Self, o arquétipo da totalidade e centro regulador da psique, que nos
conduz, continuamente, em busca do ser inteiro, integrado ao universo, e que se torna
coautor dos destinos junto com a divindade.

Seguir o caminho da individuação exige o despertar da consciência e perseverança
na busca do autoconhecimento. Ainda são relativamente poucos os que o seguem, a
grande maioria vive de forma unilateral, excessivamente racionalista, onde a vida
simbólica tem pouco espaço, o que nos torna uma sociedade massificada e dominada,
como lembrado por Jung, pelos inúmeros “ismos” que seguimos, e que somente
aumentam a ilusão antropocêntrica do ser humano e lhe dificultam tornar-se “inteiro” e
integrar-se ao mundo como um elo da vida. Cabe à consciência individual reverter o
excesso de uniteralidade que desenvolveu, trabalhar a polarização psíquica tão presente
na humanidade racional, com sua orientação patriarcal autocrática, e reduzir os seus
efeitos perversos. A individuação, cujo propósito é a busca do sentido da vida, pode ser
um caminho.

A humanidade experimentou inúmeras vezes, tanto individualmente quanto como
coletividade, que a consciência individual significa separação e inimizade. No indivíduo, o tempo de dissociação é tempo de doença, o mesmo acontecendo na vida dos povos. Não
podemos negar que a nossa época é um tempo de dissociação e doença. As condições
políticas e sociais, a fragmentação religiosa e filosófica, a arte e psicologia modernas, tudo
dá a entender a mesma coisa… Se formos honestos, temos que reconhecer que ninguém
mais se sente totalmente bem no mundo atual; aliás, o mal-estar vai aumentando… Com a
tomada da consciência, o germe da doença da dissociação plantou-se no espírito da
humanidade, sendo o maior bem e o maior mal ao nosso tempo (JUNG, 2011b, p.151)

Por que Jung afirmou que a dissociação é o maior mal e o maior bem de nosso
tempo? Por um lado, dissociação e unilateralidade estão associadas, pois levam o
indivíduo a conviver com sofrimentos e conflitos que favorecem dependências e
neuroses, entre outras patologias psíquicas. Mas, também, é um bem, pois a psique tem
como princípio a enantiodromia, processo energético inconsciente de mudança de
perspectiva segundo o qual atitudes se transformam em outras opostas, e a energia
psíquica busca naturalmente o oposto visando um novo equilíbrio. Desse modo, um mal
aparente, pode levar a um bem, e vice-versa. A Covid-19 se insere nesse contexto,
criando situações distópicas que provocam o indivíduo a pensar sobre sua condição
humana e psíquica, forçando-o a evoluir, mesmo que de forma imperceptível à maioria.

O homem contemporâneo não consegue perceber que, apesar de toda sua
racionalização e toda a sua eficiência, continua possuído por ‘forças’ além do seu controle.
Seus deuses e demônios absolutamente não desaparecem; tem apenas novos nomes. E
conservam-no em contato íntimo com a inquietude, apreensões vagas, complicações
psicológicas, uma insaciável necessidade de pílulas, álcool, fumo, alimento e, acima de
tudo com uma enorme coleção, de neuroses… (JUNG, 1964, p. 82)

A partir dessas reflexões podemos tecer algumas considerações sobre o significado
e propósito da vida, num sentido mais amplo e coletivo, e sobre um futuro possível para
a humanidade. Cada ser, em seu íntimo, aspira por um mundo melhor, ético, com justiça
social, econômica, respeito à diversidade e à natureza. A solução não está fora, mas
dentro de cada um, e assim, cabe ao homem se tornar cocriador de um mundo que
atenda às necessidades, nossas e das gerações futuras. A teoria do caos e a psicologia
analítica de Jung nos oferecem contribuições para essa resposta. A teoria do caos, um
campo de estudo multidisciplinar, descreve o mundo como um fluxo de processos,
entremeados de perturbações, a partir das quais são geradas bifurcações indicando a
possibilidade de caminhos futuros distintos. O novo caminho a ser seguido dependerá
das condições e variáveis que coexistem com o estado de perturbação. Vivemos, nesta
pandemia, uma perturbação no processo humano, e o caminho adiante de nós não está
definido. Junte-se a estas considerações as contribuições da psicologia analítica para o
propósito da vida do ser humano, o intento para o qual somos guiados, centrados no mito do significado ou processo de individuação, propósito que começa com as crianças
e o desenvolvimento de suas personalidades. Estas vêm ao mundo com uma complicada
predisposição psíquica, que é tudo menos uma tabula rasa, ou uma mente vazia, fato
particularmente significativo, pois são as crianças a maior esperança para se construir
um mundo psiquicamente equilibrado, condição “sine qua non” para o futuro que
desejamos.

Na criança, traços da consciência começam a emergir das profundezas da psique
inconsciente nos primeiros meses de vida. Formam-se no início como que ilhas isoladas,
que se reúnem gradualmente em um continente para formar uma consciência
relativamente coerente, o que se dá através de um processo gradativo de
desenvolvimento psíquico do ego, através de ampliações da consciência. É o surgimento
da consciência do eu que possibilita o início de relacionamento psíquico com os demais
indivíduos. Com a consciência começa a se formar a personalidade individual, que
depende da interrelação com conteúdos arquetípicos do inconsciente que, entretanto,
precisam ser ativados, o que ocorre através de relações afetivas. É o relacionamento
afetivo com os pais ou cuidadores que inicia a ativação desses conteúdos, que
delinearão a personalidade futura do indivíduo. Sem o relacionamento humano inicial a
personalidade humana não se desenvolve, e as fases subsequentes de desenvolvimento
arquetípico podem ficar prejudicadas (EDINGER, 2004). Conteúdos arquetípicos não
ativados apropriadamente podem produzir perturbações psíquicas que afetarão o
desenvolvimento psíquico futuro da personalidade, interferindo nas fases subsequentes
à infância, desde a puberdade, passando pela fase adulta e pela metanóia.

O desenvolvimento psíquico não segue um processo linear, mas sim dialético.
Pode-se pular etapas ou simplesmente estagnar em algumas delas, criando
desequilíbrios psicológicos. De todas as fases evolutivas, a relação arquetípica com a
figura materna ou cuidadora é a etapa mais crítica e determinará as seguintes. Com o
tempo a criança cresce e se desliga naturalmente da mãe biológica, mas pode continuar
vivendo inconscientemente o arquétipo materno, substituindo a mãe natural por outras
imagens, projetadas egoisticamente nas empresas, no estado, e na própria Terra, e que
têm contribuído para o atual quadro de pauperização dos recursos naturais e de
desigualdades sociais e econômicas. A desvinculação progressiva depende de o
indivíduo deixar de vivenciar os arquétipos parentais que lhe acompanharam desde a
infância, condicionada pelas transformações psicológicas que culminam na
conscientização e integração de tendências e funções opostas, e na eterna busca da
totalidade, a individuação.

Somos continuamente tomados por forças inconscientes, que têm poder sobre o
rumo dos acontecimentos, independentemente de nossa vontade consciente e racional.
Somos, com poucas exceções, excessivamente simplistas na interpretação do mundo,
limitados pelo alcance atual de nossa visão/percepção egóica, o que dificulta, mas não
impossibilita, o sonho de construir um mundo melhor. Pensar e sentir a individuação com
o coração dá sentido para esse sonho e representa um movimento de ampliação da
consciência em pelo menos duas dimensões, uma “para dentro”, integrando polaridades
psíquicas que levam ao “homem inteiro”, e a outra “para fora”, abraçando o mundo e os
seres humanos, nossos semelhantes (CAPRA & LUISI, 2014).

O processo da individuação, entretanto, que é numinoso em sua essência, é lento
e quase imperceptível, e não pode ser acelerado exclusivamente por processos racionais
intensivos de reflexão. Dificilmente ocorre durante uma existência sem a transformação
afetiva do indivíduo, e é prejudicado pelo atraso moral que acompanha a humanidade,
paradoxalmente incompatível com o desenvolvimento científico, técnico e social que se
alcançou. Porém, muito do que está em jogo para o futuro da jornada humana depende
da qualidade psíquica do homem, conforme enfatizou Jung (2011b).

Se a compreensão dos processos psíquicos e naturais é fundamental para as
aspirações íntimas da humanidade, não se pode esquecer de um terceiro fator, tão
importantes quanto os anteriores, a educação. Há de se pensar que, se desejamos um
mundo melhor para as gerações futuras, temos que colaborar para que essas gerações
sejam mais bem preparadas do que a nossa, para cuidar do mundo. A educação é o
grande vetor de transformação para recuperar nosso atraso psíquico e para atingir esse
resultado. Não nos referimos à educação tradicional, direcionada a interesses de grupos
econômicos, políticos e sociais, mas sim à que Jung e tantos outros pensadores
propuseram para desenvolver o novo homem, que deve começar pela criança e
continuar no adulto. Uma educação orientada à formação de um indivíduo integrado em
suas funções racionais, afetivas e anímicas deve seguir as linhas naturais do
desenvolvimento da personalidade. Deve, também, colaborar para a emersão de uma
consciência equilibrada a partir do inconsciente, como uma nova ilha que aflora sobre a
superfície do mar, mas a ele se mantém dinamicamente conectada. A educação e a
formação apropriada das crianças são sua base e a escola é o seu meio natural (JUNG,
1981).

É necessário ir além dos conteúdos padronizados e oferecer à criança
experiências que a conscientizem de sua natureza dual e da sua posição inequívoca na
rede da vida e do universo. Entretanto, há um desafio intrínseco nessa proposta, que é
a educação do educador. A personalidade do professor, assim como a dos pais e de outros adultos significativos na vida da criança, tem papel fundamental em sua educação,
de modo que cabe a eles completar a educação dada pelos pais, ajudando-a a
desprender-se, até certo ponto, dos valores familiares. Uma educação voltada ao
desenvolvimento pleno da personalidade não é uma tarefa fácil, depende de pais e
educadores que nem sempre atingiram maturidade psíquica, o que cria uma situação
paradoxal, pois, ao mesmo tempo que a criança precisa desenvolver-se para poder ser
educada, sua personalidade deve primeiramente desabrochar, antes de ser submetida
à educação, o que resulta em imprevisibilidade, pois não se sabe em que sentido se
desenvolverá a personalidade em formação, uma vez que em seus estágios iniciais é
dependente de progenitores e cuidadores (JUNG, 1981).

Com essas reflexões procuramos enfatizar que a psique humana e seu
amadurecimento têm um papel relevante no quadro atual de incertezas planetárias, e
que transcender o atual “status quo” psíquico não é tarefa fácil e nem rápida. Sem
indivíduos psiquicamente maduros e “inteiros”, nem o conhecimento científico, nem as
tecnologias disponíveis e nem os recursos econômicos serão eficazes na construção de
uma sociedade planetária ética, justa e psiquicamente equilibrada. A abordagem desses
assuntos traz esclarecimentos sobre temas que influenciam a construção de um futuro
comum e que devem ser enfrentados corajosamente, pois é o futuro da humanidade e
de todos os seres vivos, entre os quais nos encontramos, que está na pauta das
discussões.

Homero Jorge Mazzola – Analista e terapeuta junguiano

Referências bibliográficas
CAPRA, Fritjof e LUISI, Pier Luigi. A Visão Sistêmica da Vida – Uma concepção unificada
e suas implicações filosófica, políticas, sociais e econômicas. São Paulo: Cultrix, 2014.
EDINGER, Edward F. Ciência da Alma – Uma perspectiva junguiana. São Paulo, Paulus,
2004.
JUNG, Carl Gustav. O Homem e seus Símbolos. Rio de Janeiro, Editora Nova
Fronteira,1964.
————————– O Desenvolvimento da Personalidade. Petrópolis, Editora Vozes,
1981.
————————– A Natureza da Psique. Petrópolis, Editora Vozes, 2009.
————————– Presente e Futuro. Petrópolis: Ed. Vozes, 2011a.
————————– Civilização em Transição. Petrópolis: Editora Vozes, 2011b.

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